12.6.19

Copa de Literatura Brasileira 2007: uma resenha republicada


*Resenha publicada em 2007 no site "Copa de literatura brasileira". Republicada a pedidos!

Explicando: a Copa de Literatura Brasileira (CLB) foi um campeonato entre romances brasileiros publicados no ano anterior. Eram 16 romances que iam se derrotando em partidas, um contra o outro: os vencedores prosseguiam até a final. Participei de todas as edições como resenhista - nem lembro mais se foram 4 ou 5 edições. O site nem existe mais, mas a caixa de comentários pegava fogo (quem viveu, se lembra - a cultura dos prints não estava tão disseminada na época). Guardei muitos nomes e fiz muitos inimigos! :-) Pelo menos descobri muita literatura boa no caminho.

Jogo 13 da CLB 2007: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, versus Leda, de Roberto Pompeu de Toledo


Como numa Copa do Mundo de verdade, muitas vezes o sorteio determina chaves fortes ou fracas. Assim, muitas vezes um favorito precisa eliminar outro para passar à próxima fase, enquanto um pangaré continua no campeonato sem grandes esforços - e a distorção entre o banco de apostas e a realidade faz qualquer torcedor querer gritar por “justiça” e até querer parar de acompanhar os jogos.

Qual foi o caso aqui neste jogo? Um dos livros julgados teve de enfrentar adversários fortes nas suas chaves de origem para chegar aqui; o outro ganhou pelo menos uma partida por sorte ou, melhor dizendo, por motivos técnicos. Mas só me cabe apitar a partida entre os que efetivamente li: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, versus Leda, de Roberto Pompeu de Toledo.

Não é pelo exótico que Um defeito de cor encanta. Nem pelo toque politicamente correto de ser um “romance afro-brasileiro”. (Eu até torço o nariz para essas coisas, quando feitas com uma indevida ênfase à causa que defendem, porque arte comprometida raramente escapa de ser chata.) Um defeito de cor é simplesmente uma história muito bem contada.

O livro tem 950 páginas. Todos os que me viram lendo Um defeito de cor arregalaram os olhos: “uau, que tijolão!”, “parece o meu livro de química!” Matei duas moscas durante a leitura simplesmente depositando o volume sobre elas. Além de ser um texto extenso, a autora escolheu não usar travessões ou aspas para representar a fala dos personagens: é tudo paráfrase, encaixando-se em enormes parágrafos de texto corrido -- a típica mancha gráfica espanta-leitor. Cadê o incentivo para comprar (e efetivamente pegar para ler) o livro? É duro imaginar como é que o leitor comum irá vencer esse Everest – até que se abra o livro na primeira página do primeiro capítulo.

A leitura avança rápido e bem, com uma taxa adequada de repetições, referências a acontecimentos (passados e futuros) e advérbios bem colocados para ajudar a memória e incentivar o progresso. A leitura desacelera sempre que há excesso de didatismo, mas só emperra mesmo por volta da página 400, a parte que trata da revolta dos malês (negros muçulmanos), retomando o impulso lá pela 550. As paráfrases dos diálogos funcionam que é uma beleza, muito melhor do que, por exemplo, a técnica de José Saramago de separar cada fala por vírgulas. Ficamos até conhecendo melhor a narradora através de sua forma de refrasear o que outros disseram.

A história: a pequena Kehinde é arrancada à África para ser vendida como escrava e, até chegar à costa brasileira, perde toda a família, inclusive uma irmã gêmea (ibêji, na cultura iorubá). Rebatizada Luísa, é comprada para virar mucama, cresce, fica forra, participa da revolta dos malês, volta à África e depois decide voltar ao Brasil.

A cada bordoada que Kehinde toma da vida, desde criancinha, ela vai ficando mais forte e mais esperta – e o leitor, mais encantado com sua fibra. Kehinde/Luísa narra já velha, de um ponto fixo no futuro, e em primeira pessoa. Assim, sua narrativa é uniforme justamente porque narrada do ápice do amadurecimento. Só tem um porém. Depois que nasce o segundo filho, Omotunde, Kehinde começa a se dirigir a ele diretamente por você, alternando com a terceira pessoa usada desde o começo do livro. Há coisas como “...meu novo filho chorou” e “seu pai queria fazer de você um doutor” no mesmo parágrafo. Isso dá a impressão de que a velha Kehinde não tem lá muita concentração, e não parece ter sido intencional.

Apesar de episódios que podem ser vistos como fortes, não há grandes momentos de sentimentalismo ou autopiedade - nem de seu oposto, tédio ou cinismo - em Um defeito de cor. Se o leitor quiser senti-los por Kehinde, ele que sinta. A sensibilidade da (ótima) personagem não é a nossa: não é a do leitor nem provavelmente a da autora. Mais um ponto positivo.

Outro romance que trabalha bem a mitologia africana, inclusive usando o tema da ibêji morta, é A menina Ícaro, da nigeriana radicada em Londres Helen Oyeyemi. Significativamente, é comparado a este seu “gêmeo” que Defeito mostra mais seus defeitos: é explanatório demais, como se de vez em quando Kehinde/Luísa se destacasse do seu pano de fundo histórico e fosse bem lampeira até a lousa dar uma aulinha sobre cultura iorubá (ou geografia baiana, ou funcionamento de engenhos...). Em A menina Ícaro fica totalmente a critério do leitor conhecer mais sobre essa cultura – as explicações são propositalmente embaçadas. Mas a Wikipédia, a Barsa e a Brittanica existem para isso mesmo.

É muito mais difícil explicar por que um livro é bom do que por que outro não o é. É por isso que esta resenha vai ficando por aqui para se deter sobre os problemas de Leda.

Sinopse: Adolfo Lemoleme, jovem professor de literatura, começa a escrever a biografia de seu escritor e ídolo Bernardo Dopolobo. Em Leda, os ingredientes são os mais promissores: relação mestre/discípulo, mulheres, intrigas, vaidade intelectual, metalinguagem. Ainda por cima, os personagens caminham num terreno conhecido pelo autor, o acadêmico. Só que, de repente, dona Gigi, sogra de Dopolobo e cozinheira de mão cheia, solta uma análise literária destas em plena cozinha: “Eu vejo nessa história uma espécie de castigo contra esse país”. Ou seja, quando a ação sai desse ambiente, a linguagem se esquece de sair junto.

No atribulado começo há uma inútil inversão de pretensiosos adjetivos; depois, isto se dilui e, se havia um propósito no exagero inicial, não fica muito claro. De repente, há alguma conexão com uma das melhores coisas do livro: o retrato da galardeação intelectual que vai se acumulando sobre Dopolobo e, depois, sobre Lemoleme. Além das referências ao fiacre de Emma Bovary, evidenciando a ascendência de Flaubert sobre o personagem Dopolobo (e muito possivelmente sobre o autor), há a citação de livros inexistentes, um truque herdado de Borges.

Leda tem o valor de construir personagens muito coerentes. Acontece que eles são tão coerentes que só exibem o que se espera deles desde o princípio, emperrando um tanto a leitura. Aliás, os nomes dos personagens são todos sugestivos, coisa que angaria a antipatia de qualquer leitor bom em anagramas ou idiomas. Bernardo Dopolobo. Adolfo Lemoleme. Felícia Faca. Doutor Nochebuena. Professor Spielverderber. E por aí vai. O fato de haver trocas de ponto de vista não ajuda – logo ficamos sabendo o que Dopolobo e sua atual mulher pensam de Lemoleme, cortando o suspense pela raiz. Fosse diferente, Leda poderia ter frutificado numa boa história de detetive em disfarce de acadêmica (um Código Da Vinci menos medíocre).

O maior erro do livro está em descortinar a intimidade dos personagens sem com isso chegar a iluminar os desvãos mais sombrios de suas almas. Aliás, nem era preciso ir pelo caminho da seriedade. Se a proposta fosse, por exemplo, fazer pouco das intrigas e relações do mundinho literário – como fazem A estrela sobe (Marques Rebelo) e o recente Os atalhos de Samantha (Márcio Paschoal) com a indústria musical –, poderíamos nos comprazer nessa metalinguagem. Mas Leda caiu no meio-termo e caiu mal. Solenizou a relação mestre-discípulo e sua inversão, recorrendo a um quase humor que quase funciona. Não é que Roberto Pompeu de Toledo não saiba fazer isso. A história O pecado encoberto, parafraseada no epílogo de Leda, é excelente, cheia de ironia e movimento; se o livro todo fosse assim, ganhava de Defeito fácil, fácil. É que o autor procurou fazer algo de novo: uma jornada lítero-acadêmica, com metalinguagem e ironia, que não se escorasse nem no moralismo humorístico (Flaubert), nem na obsessão alfarrábica (Borges), e que resultasse em crítica e epifania. Fica esse mérito, mesmo que a tentativa tenha resultado frustrada.

Um defeito de cor dribla um grande número de páginas e algumas explicações e inconsistências narrativas para marcar um golaço no final: o de contar uma boa história. Embolou um pouco o meio de campo, mas jogou com alegria e garra, sem esquecer do placar. Leda entrou em campo promissor, depois se perdeu e só fez ficar mais lento no segundo tempo. Procurou inovar no esquema técnico e com isso deu seus chutes a gol, mas marcar, que é bom, quase nada. Lembram do “Quadrado Mágico” do Parreira? Pois é.


Bônus: Minha resenha da final da CLB 2007 Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves) versus Música perdida (Luiz Antonio de Assis Brasil)

Um defeito de cor e Música perdida têm suas similaridades: trajetórias de vida de brasileiros durante o século XIX. O primeiro tomou um ângulo politicamente agradável, empregando uma linguagem de “causo”; o segundo escolheu um viés erudito e uma forma de expressão elíptica. Cada um à sua maneira, ambos são bons livros; justo mesmo seria declarar empate. Nos pênaltis, a vitória foi de Música perdida, pela objetividade e pelas boas pensatas.


Eu teria que ter lido mais livros para dar uma opinião mais sólida, mas acho que Mãos de cavalo mereceria ter ido mais adiante na Copa. A final foi entre dois livros bons, mas não empolgantes; ficou um gosto de final de 94.




25.9.17

Twin Peaks: aconteceu de novo

Em 1990-91, Twin Peaks deixou pessoas no mundo todo grudadas à TV com dois ingredientes fortes: uma investigação de assassinato e muita bizarrice. Diz-se até que o então chefe de estado da URSS, Mikhail Gorbachev, teria perguntado ao (primeiro) presidente Bush norte-americano quem, afinal, havia matado Laura Palmer. Os produtores da série também pressionaram o diretor David Lynch a resolver logo o mistério. Quando o assassino foi revelado, no meio da segunda temporada, o público debandou.
Restaram os espectadores encantados pela atmosfera de cidadezinha do noroeste americano, com jovens nada inocentes mas muito bem agasalhados. Restaram também aqueles que se empenham ativamente na construção de teorias, que ligam os pontos, detetives do transcendental – à maneira do personagem Dale Cooper, agente do FBI cujo charme reside em não perceber que é galã. E o seriado acabou cancelado na segunda temporada, sem desfecho claro.
Na época, Twin Peaks foi uma série ímpar, cuja estranheza e complexidade abriram caminho para obras afins na TV – como Arquivo X e LOST –, e quem sabe tenha até contribuído para o boom das séries como mídia respeitável de 2005 para cá. Emissoras a cabo e, mais recentemente, os serviços de streaming, como Netflix e Hulu, investem pesado em histórias grandiosas, com um público fiel que debate cada episódio assim que ele sai.
Porém, esse público anda cada vez mais exigente. Séries cujos mistérios e revelações são julgados insatisfatórios ou descabidos podem ser abandonadas no meio – primeiro pelo público, depois pelos produtores.
Tudo precisa ser explicado. Tudo precisa ser mostrado. Mas não cedo (ou tarde) demais, nem claramente (ou obscuramente) demais, senão o público perde o interesse, e a série para de dar dinheiro.

“Eu não vim para explicar...”

 Essas expectativas impossíveis têm deturpado o espírito de algumas das séries mais célebres, como Game of Thrones, cuja temporada mais recente (pule o resto do parágrafo se ainda não assistiu) não matou ninguém importante, resumiu jornadas longas e perigosas por um mundo medieval a partida-e-chegada (no mesmo episódio!) e foi, em suma, acusada de ter feito de tudo para satisfazer os fãs.
Quando Mark Frost e David Lynch anunciaram, em 2014, que preparavam uma terceira temporada de Twin Peaks, o frisson foi grande. Havia uma chance de que o final inexplicado da segunda temporada, com o mocinho Dale Cooper aparentemente possuído, fosse ganhar a tão sonhada resolução. Ou, então, de que novamente a série abalaria as estruturas do que se entende por TV, mesmo numa época de bufê mais variado. Mas logo ficou claro que David Lynch não vinha para explicar, e sim para confundir.
No começo da nova temporada de Twin Peaks, o público esperava o retorno de seus personagens prediletos e que enfim se desse jeito nas inúmeras pontas soltas. Em vez disso, novos personagens e tramas foram se esparramando, tentaculares, em todas as direções. Muitos espectadores, de novo, perderam o interesse. Assim como na série de 25 anos atrás, recorreu-se a certos lugares-comuns televisivos: duplos malvados, historietas românticas, mulheres fatais, gângsteres de terno – mas em se tratando de Lynch, nunca eram realmente “comuns”. Eis que, no penúltimo episódio, após arrematar algumas tramas e agradar um pouco os fãs, Lynch embarca no tropo da viagem no tempo. O agente Cooper resgata Laura Palmer antes que ela possa ser morta e a leva para outra realidade. Afinal, desfazer a suposta confusão “original” resolve tudo – inclusive o excesso de tramas. Quando enfim, 25 anos depois, assistimos o desfecho, seu significado não é nada óbvio.
No livro A história secreta de Twin Peaks, lançado por Mark Frost em 2016, há algumas pistas extras. O livro é apresentado como um dossiê comentado por uma agente do FBI, juntando personagens e documentos históricos reais e ficcionais. Um dos personagens reais de A história secreta é Jack Parsons, especialista em foguetes e praticante de magia thelêmica que, nos anos 1940, foi procurado pela atriz Marjorie Cameron após um ritual para invocar a deusa Babalon. No seriado, a personagem Diane aparece caracterizada tal e qual Marjorie em uma de suas aparições mais famosas, de peruca ruiva e negligée florido, e faz sexo com Cooper no mundo paralelo do último episódio – será uma espécie de sexo mágico?
A principal pista oferecida pelo livro, no entanto, é a declaração inicial do Arquivista, a pessoa que montou o dossiê, sobre o mistério como o ingrediente mais essencial à vida. A antipatia de Lynch por respostas claras explica e define o formato do livro: tramas espiralantes sobre conspirações que nunca se resolvem, mas são inexplicavelmente satisfatórias.

Apertando o reset

No mundo para que Cooper levou Laura no último episódio, nem bem é 1989, nem 2017. Laura, 25 anos mais velha, confusa, não se lembra de sua vida pregressa, e acha que seu nome é Carrie. Mas é um mundo muito parecido com o nosso, onde a casa em que foi filmada a série é habitada pela verdadeira proprietária, que desconhece qualquer família Palmer. Ao entrarem na suposta “Twin Peaks”, não vemos a icônica placa da cidade (fictícia). Quando Cooper questiona a linha do tempo, o véu daquela realidade se rompe, a voz da mãe de Laura grita seu nome dentro da casa, e Carrie/Laura se lembra de tudo, soltando um grito primal. E a tela escurece. É o nosso mundo que é uma espécie de inferno, e ele acaba.
Brotaram, já no dia seguinte, diversas teorias de fãs que apontam para esse final como uma armadilha para prender ou eliminar as entidades sobrenaturais maléficas que torturaram a pobre Laura e a cidadezinha inteira, efetivamente resolvendo tudo. Mas quem assistiu na hora se sentiu absolutamente encafifado e talvez até traído.

Ao que tudo indica, o final ambíguo passado em nossa realidade é um espelho voltado para nós, a audiência, que em grande parte espera tudo mastigado e ao mesmo tempo surpreendente, sem investir nem um pouco de tutano em troca. No entanto, a era do fã-clube globalizado pode significar demandas impossíveis, mas também uma força-tarefa pronta a investigar uma obra e, mais do que isso, comungar em volta dela. Intuindo isso, David Lynch pode ter conseguido o impossível: fazer um revival satisfatório para ele e para nós, ao mesmo tempo em que foi crítico a certas seções mimadas do público que querem tudo, senão dão chilique.

3.7.17

O ético, o estético e o empático: leitores pra quê?

Uma amiga me conta de um episódio de Sex & The City em que uma das mulheres está namorando um escritor. Ele lhe pede uma leitura crítica. Ela elogia a obra, mas diz que sua personagem principal feminina é implausível: uma nova-iorquina redatora de revista que usa scrunchies (frufrus de cabelo), algo datado desde os anos 80. Ele fica ofendidíssimo. Fim de caso.

Sensitivity readers, ou “leitores sensíveis”, têm sido adotados por editoras para se certificarem de que o autor não falou nenhuma merda muito grande sobre minorias. Para mim, se trata de um subtipo do leitor crítico ou parecerista, adotado por editoras e autores quando creem precisar de uma segunda opinião. Eu mesma já pedi a amigas que fossem leitoras beta do meu próximo romance, com duas protagonistas de ascendência indígena e negra. Isso pra mim faz parte da criação e sempre procuro. Creio que, quando você não tem a experiência direta – por mais que você esteja envolvida, cultive a empatia, pesquise ficção e teoria a respeito do tema –, sempre há um ponto cego. Quem não conhece romances com personagem feminina escritos por homem que fazem muita mulher chorar sangue ao lembrar que existem? Se esses homens tivessem pensado em submeter o romance a uma leitura crítica por uma mulher, talvez o desastre pudesse ter sido evitado... A questão é que muitos desses caras não querem isso – expor seu romance a uma crítica dessas, e ainda ter o trabalho de mudar o seu romance depois.

O medo de alguns escritores se revela ao abominarem leituras críticas de qualquer tipo, não apenas os leitores sensíveis. Tacham-na de censura e de pasteurização. Numa estranha mistura de insegurança com orgulho, evitam até editores que “mexem” no texto (?) e ficam ofendidos quando um editor ousa fazer uma sugestão. Ninguém pode tocar em sua obra sem sua autorização. Ele, aliás, não escreve pensando no leitor.

Então o problema pra mim não é a existência de sensitivity readers ou leitores beta ou editores, e sim a editora obrigar o escritor a obedecer a um tipo específico de parecer, desrespeitando a sua integridade artística. Aliás, a editora faz isso não por se preocupar de verdade com minorias, mas por motivos financeiros. Um livro boicotado não vende, uma edição recolhida não lucra, um processinho desagrada os acionistas e espanta investidores...

Mas, na real, as editoras brasileiras não obrigam ninguém a nada, gente. Aqui, editores são aconselhados a “pegar leve” com Fulano e, de qualquer modo, têm livros demais pra editar: não perca muito tempo com isso é a tônica. E ninguém gosta muito de encomendar parecer externo; desvaloriza a “prata da casa”. Quando há conselhos, eles são bem negociáveis: o autor pode explicar porque tomou aquela decisão artística (“o personagem é escroto mesmo!”) ou, em último caso, bater o pé e fazer questão (costuma funcionar). Então quem vê esse texto antes da publicação sem ser escritor e editor? No máximo, os amigos e namoradxs do escritor, antes de ele mandar à editora. Essas pessoas, evidentemente, não vão fazer nenhuma revisão radical.

Por mim, que deixem a pessoa escrever romance ruim.

Ética x estética

Outro problema reside na definição de ruim. Um livro imoral pode ser esteticamente ótimo (Justine), e um livro moralmente correto pode curar a insônia em apenas duas páginas (O feijão e o sonho). A boa ficção deve ir além do ético e do estético: não é um exemplo pra vida, nem um comentário direto sobre práticas existentes, ainda que use de elementos selecionados da realidade. Conforme sugere o teórico Wolfgang Iser, é na ficção que você tem a liberdade de entretecer imaginação e realidade para criar uma máquina que, na interação com o leitor, gera experiência estética e, depois, sentido. O autor e o leitor entram com seus respectivos repertórios de vivências e de tradição literária – e, muito importante, com suas imaginações; a leitura do texto põe em jogo esses elementos, trazendo algo de novo ao mundo.

No contexto atual de leitores sensíveis, muito se fala de uma “censura do politicamente correto”, que proibiria personagens antipáticos, homofóbicos, machistas, racistas, criminosos, ou então de uma tendência a querer transformar literatura em “auto-ajuda”. Como falei, essa “proibição” simplesmente não acontece no Brasil. Mesmo que haja uma edição ou parecer questionador, geralmente há espaço pro autor explicar, por exemplo, que aquilo não é pra representar a realidade, que veio de sua imaginação ou é uma referência literária específica. Só que muito autor não quer ter esse embate, ou tem preconceito: todos sabem menos do que ele, e nenhum olhar pode acrescentar nada.

O problema, na minha experiência de leitora, não é querer personagens politicamente corretos, gostáveis ou anódinos. Adoro personagens muito muito mas muito errados. Li Lolita com 15 anos, e adorei, e entendi, mesmo detestando levar cantada de rua de trintões e quarentões. Dolores Haze se parecia com algumas de minhas colegas de escola e até comigo – assim como o próprio Humbert Humbert, em sua sexualidade intelectualmente justificada e muito específica; a mãe de Lolita identifiquei com a minha mãe, com quem eu não me dava nada bem na época – mas fiquei morta de pena quando a personagem morreu. Amo todos os personagens de Dostoiévski, inclusive os mais abjetos. Agora estou lendo Pynchon (Contra o dia, e devo engatar n’O último grito). Então do que estou reclamando? O problema é quando meu repertório de vivências pessoais ou literárias desmente como artificial ou engessada a montagem de temas que o autor fez no texto. Aí eu posso chamar um livro de ruim de consciência limpa.

Eis uma experiência de leitura comum para mim: enxergar nas entrelinhas de um romance escrito por homem uma ideia muito distorcida do que é ser mulher. Uma petição de princípio, se quiserem. Você vai lendo, lendo e a mágica (estética) não acontece como previsto. Você percebe que, para o autor que pariu aquela mulher, “querer engravidar” ou “perder o filho/marido” ou “ser ‘maluca’” é uma motivação autossuficiente, uma espécie de caixa-preta “natural”, advinda talvez do útero? Você, leitora mulher, se apalpa e não encontra em si a possibilidade daquela motivação “natural”, muito mal explicada, ali inserida sem o menor cuidado ou profundidade, e até mesmo com equívoco, como que ocasionada por inexplicáveis hormônios femininos. É uma experiência estética para mim? Sem dúvida. Uma experiência estética equivalente a perder a paciência por motivos de trabalho e ouvir o chefe perguntar se você está com TPM – o que em 99% das vezes não era o efeito pretendido (em Philip Roth, por exemplo, é; você tem que topar o pacto ficcional e ir até o fim – ou desistir no meio).

Um leitor homem pode ler o mesmo livro e não enxergar nada de incômodo nessa representação da mulher. Talvez ele compartilhe da sensação de que mulher é inexplicável mesmo. Já eu, que não compartilho dessa crença e sei das minhas motivações internas, e estou cansada de encontrar sempre esse mesmo estereótipo mal-ajambrado, vou ter essa irca e não posso me omitir. O mesmo vale para o gay, a negra, o cadeirante. Mas quantos deles estão fazendo crítica?

Minorias críticas

Hoje em dia, não poucos. Sim, as minorias estão lendo e pegando o embuste no pulo. Quando as minorias mal retratadas não têm grana/tempo para ler, imagine fazer crítica, nem se lembra que elas existem. Quando elas começam a conquistar espaço, conclamar boicotes e se organizar em veículos de crítica, fica um pouco mais difícil ignorá-las. O uníssono de aprovação (ou brodagem) canônica é quebrado por aquela voz desagradável e incômoda. É bem difícil de engolir: você colocou uma mulher justamente pra calar a boquinha do politicamente correto e é por causa dela que eles vêm pra cima de você? Que gente chata! Logo você responde aos inconvenientes que “só ela achou isso” – e é o que você realmente pensa, porque as outras mulheres todas preferem confidenciar à imprudente bocuda, sabe o livro tal? Também achei bizarro! Que personagem sem sentido! Que desfecho artificial!

Monólogo interno do escritor:

“Eu não tenho que ouvir tanta gente, senão a obra perde a personalidade. Esse personagem não precisa ser complexo.”

É uma possibilidade assustadora, e concreta, que um autor como esse não se importe em retratar minorias de forma rasa – porque são eternas coadjuvantes em suas obras, porque estão ali só como cala-boca do monstrinho politicamente correto, porque ele é bom o suficiente pra isso “não fazer diferença”, porque o “meu jeito” é rei, porque “já mostrou pra um representante da minoria X” (seu único amigo da minoria X?). Essa empáfia em não querer saber a opinião dos Outros sobre sua obra final, e fazer possíveis reparos baseada nela, advém da ideia de gênio romântico, de uma suposta integridade artística que não pode ser desrespeitada por uma nojenta censura. Mas se você sabe (acabei de te contar) que isso interfere negativamente na experiência estética do seu público leitor (agora diverso) a ponto de alijá-lo, você não acha melhor saber? Não acha que pode ser uma edição desejável em vez de censura? Ou acha que o Outro pode ler você mesmo assim, e se não quiser, você não precisa dele? Isso mesmo! Foda-se o leitor!

O ogro das fábulas

Curioso constatar em alguns escritores esse discurso “foda-se o leitor” e, ao mesmo tempo, o da literatura-empatia, literatura-humanismo, que se importa e se coloca no lugar do outro. Conforme vi uma amiga escritora interpelar outro, num debate: “se você não se importa com o leitor, por que publica? Deixa na gaveta!”.

Por esse modelo malparado, as minorias estamos para a literatura como as crianças estão para o ogro das fábulas: crianças são essenciais – pra serem comidas logo no início e oferecerem motivação caixa-preta pros feitos do herói todo-poderoso. Mas as crianças reais, ah, essas, caso leiam essas fábulas, não devem se ofender ou se sentir usadas por causa disso – e se se ofenderem, os incomodados que se retirem. Alguns se retiram mesmo. Outros ficam, e se vingam: Elena Ferrante fez seu ogro ser comido logo no começo, e fornecer motivação pra suas crianças até a velhice.

Difícil aturar que ruim, hoje em dia, em ficção, possa ter a ver também com uma falha de empatia e de humildade. O autor não é onipresente-onipotente-onisciente, e pode ter convivido longamente com mulheres, negros e gays e continuar sem ter ideia de como é ser essa pessoa de dentro para fora (que é do que a literatura trata). Ouvir o Outro antes do romance pronto – e não depois –, pode ser insuficiente para retratar a complexidade da experiência pessoal dele, ou seja, escrever um bom romance. Por isso, leitores beta/editores, e não os que são seus amigos próximos, podem ser uma boa. Você pode muito bem ouvir o que não quer – mas também pode defender seu livro e aprender algo no processo, por que não?


Acho que falta em alguns autores um pouco de vontade de perder a personalidade. Talvez sua personalidade não seja tudo isso que pensam. Afinal, é muita certeza pra pouca vontade de se descobrir e desengessar – ou como se diz por aí: que autoestima da porra. Sou da escola Dostoiévski de (auto)investigação moral: se o processo de escrita de um livro me fizer reavaliar meus valores, me incomodar descortinando coisas novas sobre o mundo, isso é melhor, e não pior; vou buscar essa experiência, não fugir dela. Vou buscar leitores antes, durante e depois, e talvez não engula o que eles disserem, mas o debate é necessário, nem que seja para eu me reconhecer incapaz de mudar meu livro por causa de uma crítica, ou, orgulhosa de um ponto do livro que só serve para mim, publicar o livro como eu quero. Mas sinto que preciso perguntar, dar ouvidos e bancar o incômodo estético, ético ou empático que produzi naquela pessoa, ao menos até um certo ponto razoável. Creio que isso vai me tornar uma escritora melhor, uma pessoa melhor, e vale bem mais do que mandar correndo o original para a editora pra dar tempo de sair antes de virar o ano. Inclusive, se a editora tentasse me apressar a entregar um romance (do que duvido, porque não sou a J.K. Rowling), eu reagiria com indignação: estão desrespeitando a minha integridade artística!
x

27.11.15

Para a minha avó

Desde a primeira cantada de rua (eu devia ter 11 ou 12 anos), fui reclamar com as mulheres da minha família, indignada. Minha avó sempre dizia: "vai querer mudar o mundo?", como se fosse algo errado se indignar com aquilo. E dizia que era para eu achar engraçado. Que eu tinha que rir. O pior é que, no fundo, ela concordava comigo, eu sei disso. Só estava frustrada porque a sociedade inteira ficou a vida inteira não concordando com ela.
Eu mesma passei quinze anos nesse blog reclamando de cantadas de rua. Nem sempre fui uma feminista exemplar: posts antigos têm um tom slutshamer e/ou elitista. Mas a indignação estava lá. Nunca a deixei morrer.
Nesse meio tempo, fui rareando os posts que reclamavam especificamente de cantadas porque aqui mesmo, quando tinha caixa de comentários, várias pessoas, homens e mulheres, vinham me dissuadir. Diziam que "pegava mal". Perguntavam: "ué, mas você não gosta de ser paquerada?" (Não. Depois de 50 posts, não era óbvio?). Declaravam em outro lugar que até gostavam do meu blog antes, mas agora já não aguentavam mais ouvir eu reclamar de cantadas, e que a vontade era me gritar "gostosaaaa!" (mas não na minha cara, lógico).
E acabei desistindo de reclamar pra fora. Guardei minha indignação para mim, porque ela não encontrava eco nem na internet -- que me deu eco para meu apreço por quadrinhos e videogames e tantas coisas "esquisitas de mulher gostar". Perdi as esperanças.
E, algum tempo depois que desisti, começou a existir rede social "pra valer". E celulares com câmera. As mulheres descobriram o feminismo, e, mais importante, a sororidade. Elas começaram a reclamar de cantadas, de assédio, de passada de mão, de exibicionista e abusador de metrô, de pedofilia, de agressão e de tantas coisas que as incomodavam sistematicamente. E mais importante: aprenderam a reclamar da reclamação indevida dos outros ("ah, mas você reclama demais...").
E em 2015 isso atingiu uma massa crítica. Em 2015 as mulheres se cansaram de aguentar o que minha avó aguentou a vida inteira calada. Estou muito orgulhosa de todas nós. Queria que minha avó pudesse ver isso. Tenho certeza de que ela adoraria, e se sentiria representada, e ia começar a falar noutro tom.

Minha avó nasceu em 1930, no Rio mesmo. Adorava a escola -- pública, de qualidade, do Getúlio Vargas --, era inteligente, e só tirava notas altas. Mas teve que sair da escola na 7a série para ir trabalhar e ajudar no orçamento doméstico, pois só tinha irmãs (três!) e meu bisavô ficou incapacitado. E além disso, mulher vai só casar mesmo, pra quê educá-la?
Corta pra uns 4 anos depois, minha avó trabalhando numa casa comercial, 18 anos, se candidata a Miss Mi-Carême (Meia Quaresma, o que hoje se chama de... micareta). Era um concurso só para "modistas", ou seja, balconistas de butiques chiques. Minha bisavó descobriu que haveria desfile em traje de banho (quer dizer, um maiô super comportado pros padrões de hoje) e proibiu minha avó de desfilar. E assim ela perdeu sua segunda grande chance de ser alguém.
Quando mesmo as melhores de nós são podadas tão cedo, não dá para vencer nem pela beleza nem pela inteligência...
Espero que possamos mudar isso, ainda que tardiamente.

Albertina Rodrigues, minha avó materna, na época de sua candidatura a Miss Mi-Carême.


12.11.15

A boa menina leitora

I.                    Hilda Hilst

A boa menina leitora é calada, tímida e vive com a cara enfiada no livro. Recentemente, ela ganhou a variação geek girl, maníaca por tecnologia e games. Ela não usa minissaia. Não pratica esportes, especialmente de contato. Não pode ter vida sexual detectável. E, mesmo que se torne escritora, escreverá polidamente. Que escreva as maiores barbaridades, mas há de escrevê-las com parágrafos respeitavelmente longos e fluxo de consciência, sem palavrões; se preferir um estilo experimental e entrecortado, embaixo dele o leitor só deve ver platitudes pseudorrevoltadas.

Ao que parece, não existe (ou ninguém aguentaria) uma mulher forte em ambas as frentes: a temática e a estilística.

E aí temos a Hilda Hilst, que foi os dois. Temática e estilisticamente forte. Tanto “intelectual respeitada” como “alternativa”. Escritora de barbaridades... com estilo (e palavrões). Como? Sendo foda. Não digo “genial” porque isso implicaria em me subscrever à ideia romântica de escritor “original” que tira a “inspiração” de seu gênio interior. Hilda extraía sua matéria-prima de seu mundo interior, sim, mas também da natureza e do sagrado. Que, para ela, eram meio que a mesma coisa.

Depois de Hilda, então, “se dar ao respeito pra obter respeito” na literatura, sendo mulher, hoje em dia, se torna uma falácia incontornável.

Temos é que dar com o pé na porta.


II.                  Bom, barato e cordato

Essa ideia genérica de que “é bonito” ser escritor/ter paixão pela leitura ou “pela literatura” se torna especialmente perniciosa quando se é mulher. Receber ofertas de trabalho, a gente recebe: mas 50% são para trabalhar de graça, 35% para trabalhar ganhando um trocado, e 15% para trabalhar ganhando menos que nosso(s) amigo(s) homem(ns) – com quem, sim, a gente conversa. A gente acaba se concentrando nesses 15%, convencidas de que, se mostrarmos serviço, a coisa vai andar – e por andar queremos dizer que ganharemos mais. Mas não é assim que a coisa anda. Simplesmente ficamos congeladas feito um preço de supermercado na época do Sarney presidente. O custo de vida? Continua aumentando.

E você olha para os lados e vê suas amigas mulheres passando pela mesma coisa.

Você acaba entendendo que a boa menina leitora é vista como uma reserva de força de trabalho barata – e boa, porque sempre se esforçando para mostrar serviço. E mais: se o dinheiro fica curto e a editora resolve escolher alguns otários para não receber (em vez de pegar um empréstimo e honrar seus compromissos), quem ela calota? A boa menina leitora, que, na cabeça do mau pagador, vai ficar quietinha.

Aí ela não fica quietinha. E vira persona non grata.

Mesma coisa quando pede um aumento para continuar o ótimo trabalho que vem fazendo.

Pô, como assim, você era nosso porto seguro de bom-e-barato-e-cordato! Você nunca foi de criar problema!


Não, queridos. Vocês só não nos conheciam o suficiente.

29.10.15

A ingratidão da musa

                Estava lendo o Twitter de Paulo Coelho – sim, eu o assino – quando encontrei uma reclamação: “certa vez tive uma musa... e aí ela me acusou no Sunday Times de ‘roubar sua alma!’”. E postou uma matéria onde Christina Lamb, jornalista de guerra, se queixava de ter sido escolhida como musa da personagem principal de O Zahir, reconhecendo também que ficara lisonjeada com a homenagem. Mas, para ela, o saldo final era negativo. Dizia, de fato, que sua alma fora roubada.

                O efeito cumulativo

                Originalmente, a musa era uma divindade que inspirava o autor segundo sua arte: Calíope inspirava o orador público, Terpsícore os dançarinos, o dramaturgo tinha a ajuda de Melpômene... assim, muitas obras começavam com a invocação às musas. Mas a metáfora não demorou nadinha a se deslocar para mulheres reais. Safo, poetisa da ilha de Lesbos, logo foi arrolada como “a décima musa” por ninguém menos que Platão. E hoje é assim que entendemos “musa”: uma mulher que se destaca em algum campo (até mesmo o de futebol) e é bonita, atraente.

                No mundo literário, chamar de musa é considerado o jeito elegante de expressar interesse sexual, ou de reconhecer que seu magnetismo sexual é tão grande que você até foi aproveitada como personagem (uau!). Nunca vi ninguém chamando o DFW de muso do Franzen e do Eugenides. Deve ser porque nesse caso eles têm direito de existir como outras coisas (sujeitos, por exemplo), e ninguém se sentiria confortável sugerindo homossexualidade aí. Então tem, sim, uma sugestão sexual em chamar alguém de musa, pelo menos hoje em dia. E tem, sim, machismo.

                Explicar que você não gosta da pecha de musa é como explicar que você não está a fim de levar uma cantada. É atenção na hora errada, do jeito errado, no lugar errado. E é prejudicada pelo efeito cumulativo: parece que tudo o que querem com você é te chamar de musa e/ou pegar sua vida e reescrever do jeito deles. Ler o que você escreve? Que nada.

                A musa involuntária

                Não sou hipócrita: todos e todas precisam de atenção para fazer suas coisas – seja essa coisa conseguir alguém com quem trepar, seja avançar na carreira – mas no caso das mulheres essas atenções vêm muito contaminadas umas pelas outras. MUITO. Não dá para descontaminar totalmente (nem acredito que deveria), mas se é assim que acontece...

                ...alguém aí já viu Mad Men? (E Mad Max?)

                Hoje em dia, certas coisas mudaram. Há muito incentivo para a mulher sair da feminice tradicional (casa, filhos, marido) e se concentrar em carreira, experimentações sexuais, hobbies considerados masculinos (futebol, videogames, marcenaria). Mas uma vez que você chega nesses “lugares” onde é minoria, você se torna objeto de desejo, já que está tão “perto do coração dos homens”. Mas justamente agora que eu estava tentando ser um sujeito?, você pensa.

                Hoje precisamos mais de espaço para atuar do que príncipes para nos salvar desse trabalho todo de sermos alguém. O irônico é que as mulheres que querem desesperadamente ocupar esse pedestal de musa não interessam aos eleitores de musas. Todos sabem que a moça que jura que foi musa de livro X ou vive tentando colar no autor Y não é mesmo a musa (sabem, não é?). Os eleitores de musas gostam justamente das que não querem saber disso. Por quê? Porque beleza não é tudo. Eles querem também morcegar a sua vida, aquela que você construiu pra você a duras penas.

                A musa como double bind (duplo constrangimento)

                É uma cilada, Bino! Uma armadilha clássica. Você faz uma coisa por um motivo pessoal e afetivo (tocar bateria, escalar montanhas) e a maioria masculina te trata como se você estivesse ali com segundas intenções: conseguir homem, é claro. Mais especificamente, ele. “Pode parar de fingir que gosta mesmo de estudar engenharia: você já me encontrou!”

                Por dizer não para esse narcisismo masculino tão tolerado e insidioso, você se torna um pouco odiada também, por “invadir o mundo masculino”, imagine só, querendo ser melhor que eles. Quem tem terceiras intenções, que fique claro, são eles – e ela se chama “te manter no teu lugar”.

                Essa armadilha que mencionei também tem nome. É o famoso double bind, que costuma ser traduzido como duplo vínculo ou duplo constrangimento; em bom português, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Você pode dizer não pros homens do seu campo até se ver emparedada pelo ressentimento alheio, ou dizer sim (querendo de verdade ou não) e virar “a namorada do Fulano” ou “a piranha do pedaço” – coisas que também emparedam. De qualquer modo, você geralmente acaba odiando tudo nesse campo, a começar pelos seus colegas, a terminar pelo fato de não ascender na carreira, batendo no tal teto de vidro. “Eu até queria ir no ensaio hoje, mas para isso tenho que enfrentar aquele clima estranho na banda depois que fiquei com Cicrano e disse não pro Beltrano...” Para sair da relação doentia, o único meio é deixar o seu campo para trás (“provando” mais uma vez que “mulheres não são ‘feitas’ pra isso”).

                É o que muitas fazem: desistem. Desistem de uma relação afetiva com a ciência, a programação, a cultura nerd ou o que seja porque ligam mais para sua saúde mental (copyright Jane Eyre, 1847). Uma relação que tinha tudo para ser saudável, mas acaba tóxica porque o campo é constituído de pessoas, as pessoas são na maioria machistas e você só queria ser feliz deixando acontecer naturalmente – o que fosse, até sexo. E o que acontece não tem nada de natural: é uma tentativa de manter as coisas como são, perversas.

                O roubo de cena e o disclaimer “nem todo homem”

                Nem todo homem é mal intencionado. Quando alguém arrola uma mulher como musa, e praticamente aponta quem é, talvez genuinamente não entenda como é ruim para nós essa “grande honra”. Então vou explicar.

                Muitas de nós lutamos a vida inteira para poder agir como sujeito de nossas vidas: fazer karatê em vez de balé, poder sair à noite, cursar química e não nutrição. Alguém escolher pegar nossas vidas que tanto lutamos para moldar sob nossos próprios olhos (exigentíssimos!) e, sem nos consultar, expô-la como criação sua aos olhos dos outros é ultrajante e doloroso. Nos rouba a cena enquanto finge divulgá-la. Ao mesmo tempo que essa escolha reconhece externamente como “interessante” a identidade que tanto nos custou para montar, sugere, querendo ou não, que ela carece de validação externa – uma validação historicamente concedida... por homens. E geralmente por motivos como... beleza física – daí a palavra “musa” ser tão incômoda para nós, que queremos ser mais que um rostinho bonito. Ou seríamos modelos, misses, rainhas do bumbum.

                (Nada contra essas profissões. Mesmo. Mas me disseram, e acreditei, que escolhendo uma profissão não relacionada com o corpo eu teria muito menos problemas com homens infantis e abusados. E não é verdade não.)

                (Em tempo: Gisele Bündchen é musa porque trouxe algo além da beleza pros desfiles. Uma vivacidade, uma alegria de viver, uma espontaneidade que as modelos em geral não têm. Mas, acima de tudo, profissionalismo. Ela conseguiu ser sujeito.)

                Vamos dizer que você seja escritor e considera uma mulher real a sua musa. Acha ela bonita, acha foda o que ela fez com a própria vida. Longe de mim querer te proibir de se inspirar em alguém para escrever. Se o objetivo é esse, o que seria elegante? Decompõe a mulher, cara. Decompõe em vários personagens, não diga quem os inspirou. Diga que foram várias. Diga que não foi ninguém. E não conte para ela. Não a coloque nessa berlinda terrível, nesse double bind. Porque ou ela fala que não curtiu e prejudica a relação entre vocês, ou engole o sapo e prejudica a relação entre vocês.

                Agora, se o seu objetivo é pegar sua musa, e ela é uma mulher empenhada em ter vida própria, vou contar um segredo de polichinelo: não vai dar certo. Quando a mulher fica sabendo que foi/é sua musa, ela automaticamente perde qualquer tesão que porventura ela já tenha nutrido por você. Porque você não entende, não entende...! (Se quer entender, releia o texto.)

                Fica o alerta: não adianta se ressentir por ela não querer ocupar esse pedestal que você escolheu unilateralmente para ela. Ela vai se sentir roubada, não homenageada. Não é você; é que são muitos “vocês” e ela já está de saco cheio de ficar ali em cima sem fazer nada.

                A sensação que tenho, no entanto, é que a maioria dos homens que nos colocam nesse poleiro já sabe muito bem disso. Ficar lembrando continuamente que somos mulheres – seja com cantadas e “elogios” ou cobranças de conhecimento profundo do campo –, com toda a carga de bosta que atrelaram à identidade “feminino” (frágil, emotiva, irracional, fútil, complicada, inexplicável, esquisita, misteriosa, alienígena...), me parece, hoje em dia, só um jeito canalha de nos exasperar e enxotar do espaço que adorariam que fosse só deles. Não vai ser não, amigo. Já estamos ligadas nesse mecanismo, e ligadas umas com as outras. O circuito alternativo, aquele que levanta a bola também das mulheres, já está acontecendo, e o circuito machista vai encolher até sumir. Nem que seja por não se reproduzir...


                Esteja o rapaz nessa por inocência ou com malícia, o fato é que uma hora ele vai rodar. Não esqueça, além de criadoras, nós também somos o público.

16.8.15

Será que o presente é o futuro? - Notas sobre tempos verbais

Uma crítica recente de Antônio Ramos da Silva ao meu último romance, A vez de morrer, elogiava bastante o livro, exceto pelo uso de pretérito mais-que-perfeito (qualificado de "insistente"). Não é a primeira vez que questionam esse uso, então vou brincar de oficina literária aqui e explicitar o que há por trás do meu uso desse tempo verbal, dentro da tradição literária.

Línguas latinas, como o português, francês e espanhol, costumam render frases maiores para exprimir "uma mesma" ideia do que línguas germânicas, como o inglês e o alemão. (Coloco "uma mesma" entre aspas porque, enquanto não está em palavras, não considero ainda essa pré-ideia uma ideia, e uma vez posta em palavras de idiomas diferentes, já não é a mesma ideia. Sei porque traduzo...) Daí o autor de língua latina que quer exprimir uma ideia complexa precisa se virar nos trinta para não deixar a frase irremediavelmente feia e troncha, cheia de "de" e de verbos auxiliares.

Para evitar esses verbos auxiliares, um truque comum na literatura em francês é usar o passé simple, que equivale mais ou menos ao nosso pretérito perfeito e, na terceira pessoa do singular, termina em "a". (Por exemplo: "ele passou" fica "il passa". Para um leitor que fala português e não francês, fica parecendo o nosso presente do indicativo.) Acontece que esse tempo verbal nunca é usado na fala cotidiana em francês. No dia a dia eles usam o passé composé, com verbo auxiliar (il a passé), também equivalente ao nosso pretérito perfeito. É mais fácil de conjugar, mais coloquial. Mas na hora de narrar... recorrem ao "empolado" passé simple. A única explicação para isso me parece que é para a frase ficar menos pesada.

Em português, além de recorrer ao mais-que-perfeito, outra solução é colocar o livro todo no presente. Fiz isso no livro A feia noite, meu segundo romance, após No shopping. Assim, você terá lindos e sucintos verbos terminados em "o" na primeira pessoa (passo) e "a" na terceira (passa). Em terceira pessoa, nosso presente do indicativo fica sumário como o passé simple do francês, sem a empolação. Ao se referir ao passado, você geralmente vai usar o pretérito perfeito - quase nunca terá que usar tempos compostos. Aparentemente, só vantagens. Sendo assim, será que o presente (do indicativo) é o futuro? Todos os livros que se almejem bons/de sucesso devem ser escritos no presente?

Creio que não. No caso de A feia noite, tratava-se de personagens em crise, passando por situações que os tiravam de sua zona de conforto todos os dias (ou melhor, todas as noites, pois o livro se passa quase todo à noite). Estava difícil continuar escrevendo no passado, denotando que os personagens teriam sobrevivido a tudo aquilo (e depois de tudo sobraria alguém para narrar). Além do mais, o livro é propositalmente empolado. Para tirar um pouco dessa empolação do nível da frase e tirar a impressão de que os personagens sobreviveriam para contar (no passado) o que lhes acontecera, passei o livro todo para o presente. Ficou muito melhor. A história deslanchou e pude terminá-la.

Mas, no A vez de morrer, não senti vontade de usar o mesmo recurso. Até pensei em usá-lo, pois novamente era uma personagem saindo de sua zona de conforto e se arriscando (inclusive a morrer); mas o vocabulário que eu usava era mais simples, e eu ainda queria fazer referência a estruturas tradicionais do romance. Preferi deixar os mais-que-perfeito lá. Mas os diálogos são "realistas", coloquiais. Confiei que os leitores entenderiam que era isso que eu pretendia: apontar para a tradição sem deixar de mexer nela.

Então não é que escrever livros em português no presente do indicativo seja o futuro, mas é preciso balancear o que você, autor, quer com as necessidades da história -- sabendo que nunca vai agradar a todo mundo. Que pelo menos agrade a sua consciência artística, senso estético ou seja lá como você chame aquilo que te põe para escrever.

31.7.15

Isso não é (só) uma crítica de game

Acabei de jogar um jogo chamado The Talos Principle, da Croteam, uma desenvolvedora croata. Ouvi falar que era um puzzle parecido com Portal e Antichamber, dois grandes favoritos, e resolvi experimentar, mesmo sem saber muito sobre a história. Você desperta no papel de um robô respondendo aos comandos de um certo Elohim em um certo Jardim. Elohim te chama de meu filho ("my child") e quer que você resolva muitos puzzles para ganhar "sigils" (que são iguais a peças de Tetris). Sua recompensa, diz ele, será "a vida eterna".

Mas logo você descobre que não é só isso que tem para fazer no Jardim. Você pode cumprir outras missões fora a dada por Elohim. Você pode explorar e encontrar coisas novas a fazer -- algumas delas contrariando diretamente as ordens de Elohim, como subir na torre proibida.

E aí? Prontos para o SPOILER?

Você está dentro de uma simulação. Um ambiente virtual para robôs criado por seres humanos pouco antes de sua mal-explicada extinção. Mais ou menos uma Matrix ao contrário -- mas uma Matrix designada para que sua cobaia robótica extrapole o experimento, tornando-se... humano. Afinal, na concepção do jogo, é isso que humanos fazem: brincam, pensam lateralmente, são curiosos e... desobedecem.

Agora eu vou CONTAR O FINAL, então, fiquem avisados que é possível pular o próximo parágrafo. (Pessoalmente, acho que contá-lo não estraga o jogo.)

O objetivo final dessa simulação é produzir um pós-humano na carcaça de um robô. Apenas o robô verdadeiramente "independente", que conseguir “pensar por si mesmo”, futricar em tudo e desobedecer Elohim, "matando-o" (igual a um humano), será selecionado para ser gravado em um corpo físico e acessar o mundo real. Porém, atentando para o detalhe de que nenhum homem é uma ilha, o enigma final no topo da torre requer colaboração com outro robô, The Shepherd -- mas também há outra robô, a Samsara, tentando atrapalhar sua ascensão. (Gostei dessa parte.)

Em The Talos Principle, a humanidade de carne e osso foi eliminada e esta simulação foi seu último esforço pra se perpetuar. A singularidade miguxa do jogo (ei, máquinas, continuem a humanidade aí por nós) até pode cativar um jogador desavisado, assim como atualmente há quem esteja cativado pela ideia de “literatura feita por robôs”. Mas tudo cai por terra quando você pensa que o robô "humano" é controlado (no jogo) por um humano.

É uma nova versão daquela máquina de xadrez com uma pessoa dentro...

Um ser humano de verdade controlando um robô “destinado a pensar de forma independente, como um ser humano”. Isso é circular. Assim como é circular pensar que robôs podem produzir literatura "independente" se são os humanos os juízes finais da qualidade dessa literatura. Quando os robôs puderem votar entre si e dar, digamos, um prêmio literário robótico à melhor literatura produzida por robôs, para robôs, aí a gente conversa.

Melhor ainda se eles mesmos tiverem a ideia de criar esse prêmio para diferenciar a literatura robótica “séria” da literatura robótica ruim, muito popular, mas que apela aos mais baixos instintos do robô.

Pois é, não gosto de rótulos como literatura robótica ou feminina ou erótica, exceto como mote ocasional ("tema de redação") em antologias e afins. Para mim, essa separação entre elementos (assim como independência, livre arbítrio) que gostaríamos de postular para fins de estudo não pode ser reificada. Quer dizer, até pode, e é, muitas vezes, mas raramente com a consciência de suas limitações. Gostei de The Talos Principle na crítica sutil a essa ideia de que “dá para separar” “sujeito” de “objeto” -- marcando-os como tais para todo sempre. Traçar a linha que divide cego de bengala, homem da natureza, homem de máquina para fins de estudo não quer dizer que esta linha esteja lá, não como fato inalterável. No mundo real, as coisas vazam uma para a outra, e humano mesmo é não conseguir dar conta de tudo (e não admitir isso por nada deste mundo).

7.5.15

Uma geração cética

O cigarro eletrônico é um dispositivo a bateria que produz vapor (e não fumaça) a partir de uma resistência. É usado geralmente com essências aromáticas feitas à base de produtos usados na indústria alimentícia e cosmética (como a glicerina vegetal) que contêm certa dosagem de nicotina, estipulada na embalagem. É muito adotado por quem deseja parar de fumar. Não por fazer bem, mas por fazer menos mal que o cigarro: não contém os tóxicos da queima nem os aditivos usados pela indústria de tabaco. Além disso, cigarros eletrônicos significam economia: as partes, intercambiáveis, podem ser compradas individualmente; o líquido é fácil e relativamente seguro de fabricar na própria casa, e totalmente customizável – a pessoa pode até ir baixando o teor de nicotina até o zero, se quiser.
No entanto, é um dispositivo proibido no Brasil pela Anvisa.
O copinho menstrual é um copinho feito de silicone médico que substitui o absorvente. Como qualquer coisa de silicone que vá ter contato com áreas íntimas, deve ser esterilizado em água fervente por três minutos (antes e depois de usado, diz o manual). Basta aprender a encaixá-lo na vagina de maneira a formar um vácuo, e pronto: o conforto é sem igual. A economia é imensa. O cheiro diminui drasticamente, pois o sangue não oxida em contato com o ar (só na hora de esvaziar).
Mas uma amiga usuária de copinho ouviu da ginecologista: “nossa, mas você gosta mesmo de ficar mexendo lá dentro, não é?”.
Os anunciantes da mídia não precisam falar com todas as letras aos veículos noticiosos que preferem não ver matérias sobre esses produtos que machucam seus interesses, mas às vezes falam: quando você encontra aquela matéria pisoteando o cigarro eletrônico como se fosse o pior dos venenos, por exemplo. O usuário de cigarro eletrônico (ou vaper, como preferem ser chamados) chega a vibrar: é a confirmação de que está preocupando a indústria que um dia o escravizou. No caso do copinho menstrual, temos o silêncio ensurdecedor dos cadernos e revistas “de mulher”, que preferem falar de moda e beleza (e libido e bebês e carreira, nessa ordem). Mas existe o boca a boca: uma amiga evangeliza a outra sobre os benefícios do copinho e dá dica de marcas, tipos, manutenção... quase uma convenção das bruxas.
A internet possibilitou que as pessoas se comunicassem, se informassem e comercializassem por fora dos monopólios. Talvez esses fenômenos sejam mais visíveis nas indústrias ligadas a mulheres: algumas delas desistiram de usar métodos hormonais de contracepção por acreditar que a carga hormonal é danosa; outras assumiram os cabelos cacheados, após anos de chapinha, com um método que pode ter baixíssimo custo (low poo/no poo). Outras desistiram de depilar as axilas ou tingir os cabelos brancos. Outras, por outro lado, descolorem e tingem as axilas. Ou seja: não é mais uma questão de “fazer as grandes indústrias arrancarem os cabelos”, e sim de desafiar nossas próprias preconcepções e ouvir nossos corpos e a comunidade em que vivemos para procurar um jeito melhor – ou menos pior – de viver.
Quem faz isso já desistiu há tempos de esperar o endosso da grande mídia, do governo e da sociedade tradicional a produtos e escolhas como essas. Não nos sentimos representados por colunistas que deveriam falar a nossa língua e só conseguem audiência quando desfiam chauvinismos. Não conseguimos diálogo com a geração dos nossos pais, que não entendem porque precisamos verbalizar coisas tão desagradáveis como câncer de pulmão, sangue menstrual e... vaginas. Vemos esses mesmos pais baterem panelas ou xingar quem bate panelas com uma paixão que não mostraram na hora em que decidimos sair às ruas para os protestos de 2013 (ouvimos, na verdade, um “leva um casaquinho”).
Vejo uma geração cética, muitas vezes congelada na ataraxia (a serenidade da descrença), mas nunca deixando de questionar e ter esperança em caminhos, caminhos se possível melhores – no mínimo, menos piores. Uma coisa é visível: há cada vez menos inocentes, e o cara de pau que alega acreditar em dicotomias/dogmas e viver por eles é considerado imediatamente, por essa geração desconfiada, o menos inocente de todos.

18.12.14

A lista de 2014 – Livros e games

Todo mundo está fazendo lista, eu nunca faço lista, mas esse ano deu vontade.

Livros

Botei só nacionais. A propósito, lancei meu livro também, o romance A vez de morrer – leitores têm elogiado bastante.

Fiel (Jessé Andarilho) - Primeiro livro-com-temática-favela que leio que não só é bom, como muito bom. Parece Ender’s Game numa favela carioca (Antares, em Santa Cruz). Tem uns probleminhas (tipo siglas e uma ou outra frase fora do lugar), mas, de resto, muito bem montado. Provavelmente o primeiro livro com "mariolas ex machina".

A cabeça do santo (Socorro Acioli) – A história do rapaz que vai morar dentro da cabeça de um santo cujo corpo nunca foi concluído e acaba ouvindo as orações das mulheres da cidade. Um livro redondo e gostoso de ler, com mistérios que seguram a atenção do leitor até o fim da história. Tem uns clichês que me incomodaram um pouco (como o nome da moça Madeinusa vir de "Made in USA"), mas fora isso, tudo muito bem.

Biofobia (Santiago Nazarian) - O estilo de Santiago está todo lá, mas mais depurado: as originais associações de ideias, as alfinetadas na vida real, o gore. Pense em A morte sem nome com um protagonista masculino e mais focado, ainda que seja em consumir drogas e retomar o sucesso da juventude. Tudo no livro é muito convincente, de maneira mais emocional que racional – as questões existenciais de quem já fez 40 anos, a forma como a mãe de André se mata e ninguém nem tenta elaborar muito sobre isso, a rapa que os parentes fazem na casa, e todos os mistérios que surgem naqueles dois ou três dias em que se passa o livro.


Poética (Ana Cristina Cesar) – Poesia completa. Não gosto muito de poesia, mas quando é boa assim... especialmente a partir de A teus pés, a autora arrasa.

Ilha da decepção (Alice Sant’Anna e Alexandre Sant’Anna) - Não gosto muito de poesia, mas quando é boa assim... e com fotos em P&B boas assim... Mas é difícil achar o impresso, que teve edição limitada (e incrível); tomem uma versão em vídeo.





Games

Olhando essa lista penso: Adoro gente traumatizada. Adoro geometria. Mas também gosto de rir.
Todos esses jogos são encontráveis na plataforma Steam.

Antichamber – Um jogo baseado em geometria não euclidiana. Você pode dar a volta numa coluna e topar com uma sala que não estava lá antes. Não há inimigos, há apenas uma pistola que suga blocos do ambiente e depois os cospe em lugares convenientes (e ela vai ficando mais poderosa conforme você avança no jogo). O visual clean é impecável, com destaque para os pôsteres motivacionais que você encontra pelo caminho.

the-binding-of-isaac
TheBinding of Isaac Rebirth – jogo difícil e viciante em que você é um menininho traumatizado cuja arma são as próprias lágrimas. Várias referências bíblicas e satânicas. Remake do jogo de 2011 que era em Flash e meio bugado. O remake está poderoso. Mil troféus a serem conquistados, itens ainda mais inventivos, e nenhum bug até agora. Vale o reinvestimento.

HatofulBoyfriend – Jogo de namoro virtual com humor sombrio. Nele, sua personagem humana pode conquistar um namorado dentre vários... pombos. Sua personagem é uma caçadora-coletora e mora em uma caverna; o mundo parece dominado por aves inteligentes. É um mundo meio Hora da Aventura (o desenho animado): o apocalipse já aconteceu e tudo parece bem. No final, você desbloqueia a verdadeira história do que aconteceu – e é um horror. Pombos são maléficos...

The Cat Lady – Uma moça deprimida se suicida, mas volta dos mortos com a missão de encontrar e punir cinco psicopatas. Começa sombrio e desorientador, mas logo vira uma história de primeira. Logo que você volta para casa, percebe o desafio que é para o deprimido lidar com suas tarefas cotidianas – estragar o café, queimar a comida e ficar sem luz no apartamento podem ser verdadeiras tragédias –, mas a investigação logo absorve nossa heroína, especialmente quando ela arruma uma sidekick que lembra a Lisbeth Salander (da trilogia escandinava Millenium).


Jazzpunk – Jogo hilário do Adult Swim. Um mundo feito de bonequinhos da Vivo em que você é um agente secreto recebendo as mais improváveis missões. Excelente trilha sonora, humor nonsense, referências as mais variadas. Um dos minigames dentro do jogo é “Cake”, multiplayer de mentirinha em que as armas e itens são todas referências a casamento.